terça-feira, 19 de outubro de 2010

Niver da tia Taís.

Blade Runner

A casa de tijolos à vista era alugada e o muro próximo formava estreito corredor desde a porta lateral da cozinha até o tanque no fundo do quintal mas mesmo assim, de biquíni colorido, o barrigão encontrava uma brecha de sol para bronzear-se.

-Nossa, como você está preta! Comentava Dra. Linda enquanto avaliava a evolução da dilatação e eu, munido da enorme VHS, tentava capturar cada pedacinho daquela história por começar.

Era bem cedo ainda e, diante do inexorável parto, a doutora aviou um "sorinho" para consumá-lo de vez. Enquanto ainda havia tempo, passei pela sala de cirurgia e vi uma luminária ultra-violeta ligada, desde a noite anterior, a sapecar indesejáveis vidinhas microscópicas.

Num instante a cena estava armada: muito iodo a tudo amarelar, panos desbotados de tanto lavar, cheiro de volátil substância no ar e o interminável tilintar de estéreis inoxidáveis em meio ao falatório providencial destas horas.
Muita força, muito esforço, muita dor e aquela aura de mistério que povoava nossas mentes "pré-ultrasonográficas". Será menino? Está completo? Demora muito a nascer? O que eu filmo, as pessoas ou o "portal da vida"?

Converso para não denunciar minha ansiedade e faço de conta que nem é tão importante, afinal já tenho vasta experiência na matéria como testemunha de dois outros. Ô agonia danada!

Pego na mão da mãe, gotículas na testa, semblante contraído, pressiona a minha com força que nunca possuiu e vem então o recorrente pensamento de que só quem vê aprende o quanto se deve respeito à estupenda tarefa de trazer à luz a vida. Me emociono, discretamente.

-É uma menina! Exclama a obstetra repousando a rebenta sobre a mamãe, quase desfalecida pelo esforço.
-Ah, uma menina! Comento eu meio sem jeito; estava certo que seria outro menino...
-Nossa, que braveza, não precisa chorar, a mamãe tá aqui filhinha. Fala a mamãe em idioma de bebês.

Dra. Linda rouba minha atenção para a remoção da placenta, dificuldades por aderência decorrente de alguma infecção durante a gravidez. Nada muito sério, apenas um pouco mais de tempo e paciência para que tudo se resolva.

-Ei, ninguém dá atenção prá nós! Reclama o Dr. Manoel enquanto cumpre o "check-list" da menininha sob a luz quentinha naquela bandejona para bebês.
Prontamente eu aponto a câmera para registrar aquela coisinha rosada e sujinha daquele sebinho branco enquanto o pediatra lhe limpa os caminhos do ar, confere olhinhos, ouvidos, pézinhos e tudo mais.

Tudo beleza! Agora é a vez da enfermeira; com sua baciona abastecida de água nem muito quente apodera-se da pequena criatura para oferecer-lhe, afinal, dignidade humana. Sob o sonoro protesto da recém chegada, a enfermeira lhe faz uma boa e ágil faxina e eu, lá pertinho, sinto até hoje o delicioso e discreto perfume do sabonete. Mas quanta braveza mesmo! Braveza que logo passa à medida que as gigantes vestes envolvem o delicado e miúdo corpinho, o conforto vence a ira e a menina desiste de tanto choro.

De lá para cá tanto tempo se passou, tanto amor se deu e se ganhou que aquele momento fica meio perdido na memória da gente mas, a cada 365 dias, ele aflora e se renova inundando a gente de um jeito que nem dá prá falar, então, só escrevendo mesmo, pois em silêncio é que se escuta melhor o som que vem do coração.

Feliz aniversário Filha!

Pai.

P.S.- No dia anterior ao do seu nascimento eu havia alugado a fita do Blade Runner, maravilhosa metáfora da existência humana.

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